quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A casinha de bonecas

Era uma vez uma menininha, dessas bem cor-de-rosa, que tinha um dom que as outras menininhas cor-de-rosa não tinham: era fluente no idioma das bonecas.
Certo dia ela acordou antes do sol devido à um choro murmurado que vinha de sua casinha de bonecas.
Num pulo se levantou da cama e foi até a casinha.
Todas as bonecas dormiam pesadamente, exceto uma - a mais pequenininha - que soluçava no fundo da casa.
- Que que aconteceu? - perguntou a menina, pegando a boneca no colo.
- Nada! - titubeou a boneca, cruzando os braços e fazendo bico.
A menina olhou-a com cara de desconfiança e a boneca então começou a ceder:
- É que... Às vezes parece que você não gosta tanto de mim quanto diz.
- Que besteira é essa? - retrucou a menina - Meu amor por você chega a doer, de tão grande que é!
- Imagina então o esforço que eu faço pra comprimir toda a minha dor num coração de boneca!
- E qual é a razão de tanta dor, afinal?
A boneca aponta, então, para um porta retrato na mesinha de cabeceira da menina, sem jamais desgazer seu bico.
- Porque tanta devoção àquela foto? - perguntou a boneca, na defensiva.
- Ora, porque é a lembrança de alguém que eu gosto muito e me faz falta.
- Se aquela boneca boboca te faz falta e vocês se gostam tanto, porque ela não tá aqui com você agora?
- Porque ela foi morar em outra casa de bonecas.
- Por quê? Por acaso ela não gostava dessa aqui?
- Pelo contrário, gostava demais. Eu lhe pedi que fosse.
- Você a mandou embora? Por quê?
- Quer mesmo saber? - a boneca assentiu, curiosa - Porque eu a sufoquei.
- ELA MORREU? - se desesperou a bonequinha, e por pouco não acordou as outras.
- Não, meu bem. Eu a sufoquei de atenção.
- E isso existe, é?
- Existe sim. Eu dei à ela tanta atenção que esqueci de dar atenção à mim. E quando resolvi lembrar de mim, me deparei comigo mesma sendo mais cruel do que provavelmente jamais havia sido. - a menina então baixou os olhos.
- O que foi que você fez? - perguntou a boneca, receosa.
- Deduzi que não podia gostar de alguém mais do que de mim sem ficar doente. E não queria ficar doente. - pausa - Mas já era tarde. E não vi remédio melhor do que afastá-la de mim, mandá-la para um lugar onde cuidassem dela de forma não-obscessiva, pra que eu pudesse me voltar a cuidar.
- Mas e se não cuidarem dela tão bem quanto você cuidava? - compadeceu-se, enfim, a boneca de voz firme e coração mole.
- Ah, esse medo me atormentou por algum tempo. Mas, tenha sido por egoísmo ou o que for, achei por bem que nos afastássemos e não me arrependo.
- Não se arrepende mas venera a lembrança como quem cultiva culpa. - emburrou de novo a bonequinha - e esquece de dar atenção não só à você, dessa vez, mas também à mim, que tô aqui há tanto tempo ouvindo os seus lamentos na maior paciência e pedindo só mais atenção à mim, boneca, que a um retrato.
- Não cultivo culpa, cultivo gratidão e respeito à tudo que ela representou e representa pra mim. - pausa - Mas você tem razão: tenho sido injusta com você, e sinto muito por isso. Só não ache nunca que meu amor por você é menor que qualquer coisa nessa vida, porque não é.
A boneca baixou os ombros e a guarda. Fez menção de falar mas acabou deixando que um simples suspiro rompesse aquele silêncio sacro.
- Ei! - chamou-lhe a atenção a menina - Olha em volta. Olha que o sol ainda nem acordou e eu tô aqui com você, não com um retrato bobo ou alguma outra boneca.
- Mas isso é só porque as outras não ficam magoadas com essas coisas... Senão você daria atenção à elas também. Talvez até me deixasse de lado!
- Claro que não, sua boba! Eu jamais te deixaria de lado! É só que eu me sinto na obrigação de ser cautelosa e não dar atenção em excesso à ninguém, pra que, com o passar do tempo, não aconteça tudo de novo. Já pensou, por exemplo, se eu perco você?
- Não diz isso nem de brincadeira! - pensou alto a bonequinha e, depois de uma longa pausa continuou - E me promete que vai dar mais atenção ao que te faz bem do que ao que te fez bem?
- Prometo - respondeu a menina sem titubear. - Tem mais alguma coisa te afligindo?
Pausa.
- Na verdade, tem sim. Acho que as outras bonecas não gostam de mim, e acho que é porque eu sou pequenininha.
- Elas te maltrataram? - perguntou a menina, num susto.
- Não, mas elas não fazem questão de mim.
- Ora, então elas são um monte de bonecas bobonas por não se darem conta de como você é incrível. E quem disse que você é pequenininha?
A boneca então perguntou num tom sarcástico - E precisa?
- Pois eu não acho você pequenininha. Você é do tamanho certo.
A bonequinha não pode conter um sorriso fujão, mas fez questão de não perder a pose:
- É, eu também acho. Bom, é melhor você voltar pra cama antes que aquelas bonecas fofoqueiras acordem e venham perguntar o que aconteceu.
A menina riu, fez que sim com a cabeça, afagou a bonequinha, desejou-lhe boa noite e meteu-se embaixo da coberta com um sorriso no rosto e o tradicional urso de pelúcia entre os braços, pronta pra dormir um sono dos bons - mas não sem antes abaixar o tal retrato sobre a mesa de cabeceira, a fim de que aquela história não perturbasse o sono de mais ninguém.

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